Da COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA, sobre o Projeto de Lei do Senado n° 66, de 2004, que altera a Lei nº 8.899, de 29 de junho de 1994, para incluir entre os beneficiários do passe livre os portadores de doenças graves e incapacitantes, inclusive em empresas de transporte aéreo quando o motivo da viagem for, comprovadamente, para fins de tratamento médico, e dá outras providências.

RELATOR: Senador ROMEU TUMA

I – RELATÓRIO

O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 66, de 2004, de autoria do Senador Marcelo Crivella, pretende incluir, entre os beneficiários da gratuidade no transporte coletivo interestadual, objeto da Lei nº 8.899, de 29 de junho de 1994, as “pessoas portadoras de doenças graves e incapacitantes”. Além disso, pretende ver aplicada a mesma gratuidade ao transporte aéreo, nos casos em que a viagem do beneficiário tiver por finalidade comprovada a realização de tratamento médico. Para isso, seria garantida a reserva de um assento em cada vôo. No transporte terrestre, seria mantida a cota já em vigor, de dois assentos por veículo por viagem. O projeto fixa, ainda, regras a serem observadas pelas empresas transportadoras, entre as quais a obrigação de manter as reservas dos assentos destinados aos portadores do passe livre ao longo de todo o itinerário, além de, no caso do transporte rodoviário, garantir o transporte do beneficiário em veículo de outra categoria quando o itinerário não for coberto por serviço operado com veículo convencional. Com esse propósito, o projeto introduz alterações na Lei nº 8.899, de 1994, que “concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual”.

Na justificação que apresenta, o autor reporta-se ao compromisso do legislador com o aprimoramento das leis, em razão do que pretende ampliar o alcance social do benefício instituído pela Lei nº 8.899, de 1994, e garantir condições para o “pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, bem assim, a sua plena e efetiva integração social”. Originalmente distribuída com exclusividade à Comissão de Assuntos Sociais (CAS) para apreciação em caráter terminativo, a proposição teve o despacho de distribuição retificado em virtude da promulgação, pelo Senado, da Resolução nº 1, de 2005, que, entre outras providências, criou a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Com a retificação, a recém-criada CDH substituiu a CAS no exame da matéria, mantido o caráter terminativo da decisão.

Não foram oferecidas emendas ao projeto.

II – ANÁLISE

A proposição em análise encontra amparo no art. 22, XI, da Constituição Federal, que reserva à União a competência para legislar sobre transporte, cabendo ao Congresso Nacional, nos termos do art. 48, dispor sobre a matéria. De acordo com o art. 61, é facultada aos parlamentares, individualmente, a apresentação de proposição legislativa sobre o assunto, haja vista que sobre ele não incide a reserva de iniciativa de que trata o § 1º do mesmo artigo. Ressalvadas algumas impropriedades, considera-se que, de modo geral, o PLS nº 66, de 2004, foi elaborado dentro da boa técnica legislativa.

No mérito, reflete a preocupação do autor com a situação dos portadores de doenças graves e incapacitantes – pessoas com a vida pontuada por dificuldades e limitações, cuja superação exige cuidados médicos, amparo e assistência permanente. Para reduzir o nível das privações e facilitar o atendimento a essas necessidades, o PLS nº 66, de 2004, determina que os portadores das doenças mencionadas, a exemplo dos deficientes, passem a fazer jus à gratuidade no transporte interestadual – direito que o projeto propõe, ademais, seja reconhecido também nos serviços de transporte aéreo, em caso de viagem destinada a tratamento médico, mediante comprovação. De resto, para suprir lacunas que, no entendimento do autor, estariam prejudicando o pleno exercício dos direitos pelos beneficiários, o projeto incorpora à Lei nº 8.899, de 1994, procedimentos a serem adotados pelos operadores de transporte, com relação à reserva de assentos e à garantia de transporte do beneficiário em serviço de outra categoria quando o itinerário desejado não for atendido por serviço convencional.

Entretanto, em que pese o elevado sentido social das medidas preconizadas, o projeto apresenta alguns sérios inconvenientes que, em princípio, desaconselham a sua aprovação. Basicamente, os problemas identificados dizem respeito ao esquema de custeio da gratuidade, não previsto pelo projeto, e à questionável extensão do benefício ao transporte aéreo. Na omissão quanto à forma de custeio da gratuidade reside, indiscutivelmente, o aspecto mais crítico do projeto. Desde a edição da Lei nº 8.899, de 1994, que originalmente concedeu “passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual”, persiste a indefinição quanto a quem compete arcar com os custos da gratuidade então instituída e agora ampliada pelo PLS nº 66, de 2004, para beneficiar os portadores de doenças graves ou incapacitantes e possibilitar a utilização do transporte aéreo. A delegação de serviços públicos, entre os quais os de transporte coletivo, é implementada mediante contratos de concessão ou permissão a empresas privadas e rege-se pela Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, pela Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, e pelo Decreto-Lei nº 791, de 27 de agosto de 1969, e seus decretos regulamentadores. Especificamente em relação à Lei nº 9.074, de 1995, verifica-se que o projeto contraria flagrantemente a regra estabelecida em seu art. 35:

Art. 35. A estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente fica condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. A tarifa constitui praticamente a única fonte de financiamento do transporte público no Brasil. Para propiciar adequada cobertura financeira ao transportador, é calculada com base no número de passageiros previstos para o serviço, cotejada com os custos a serem incorridos na operação e na recuperação do capital investido ao longo do período de concessão. Assim, isenções ou descontos tarifários não previstos inicialmente podem ser apontados pelo concessionário ou permissionário como fator de desequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Os contratos de prestação de serviço já firmados constituem, com base nas normas legais, atos jurídicos perfeitos e, como tal, não podem ser modificados unilateralmente pelo poder concedente. Qualquer modificação somente pode ser introduzida mediante lei específica, desde que observado o que dispõe o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

É por isso que qualquer lei que proponha isenções ou descontos no pagamento de tarifas deve necessariamente indicar a fonte dos recursos que garantirão ao concessionário o ressarcimento da parcela da arrecadação a ser abdicada. A omissão da fonte, por sua vez, implicará, necessariamente, a revisão dos valores tarifários de forma a assegurar ao empresário a compensação pelas perdas decorrentes da isenção pretendida. Nessa hipótese, as gratuidades concedidas serão financiadas mediante aumento tarifário a ser suportado pelos demais usuários. Tal equação, todavia, não é justa para com os passageiros pagantes, já que estes estariam sendo onerados, sem usufruir de qualquer vantagem ou benefício que assim o justificasse. Não se pode exigir deles que atuem como financiadores de benefício concedido a qualquer grupo ou categoria social. Além disso, sabe-se que cada benefício tarifário concedido a determinado segmento da sociedade abre sério precedente para que outras categorias de usuários, tão ou mais necessitadas, passem a pleitear idêntico privilégio. Com isso, agrava-se a necessidade de subsídios ao sistema de transportes que, não raro, deságua em aumentos tarifários. A aplicação do art. 40 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 2003), que concedeu à categoria gratuidade no transporte coletivo interestadual, vem dando boa demonstração dos conflitos que podem se desencadear a partir de uma iniciativa descuidada do ponto de vista do custeio do benefício concedido. No caso em questão, a polêmica desaguou em séria disputa judicial travada entre a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (ABRATI), a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), na condição de órgão regulador do sistema interestadual de transporte público de passageiros, e a Confederação Nacional dos Usuários de Transportes Coletivos Rodoviários, Ferroviário, Hidroviário e Aéreo (CONUT).

O segundo aspecto questionado no projeto é a extensão da gratuidade ao transporte aéreo, a respeito do que o Comando da Aeronáutica manifestou preocupação em nota distribuída por sua assessoria parlamentar. Ao defender a necessidade de discriminar a fonte de custeio da gratuidade proposta, a referida nota pondera que “as empresas que realizam o transporte aéreo, embora concessionárias de um serviço público, são empresas privadas que não recebem qualquer subvenção do Poder Público, o que faria de tal Lei fonte de argumentação indefensável, em situações conjunturais adversas, para a obtenção de subvenções governamentais e/ou créditos favorecidos para saneamento financeiro”. E adverte que, na falta de recursos que o compensem, o ônus decorrente da gratuidade seria fatalmente repassado para a tarifa, afetando negativamente o usuário dos serviços de transporte aéreo.

Trata-se de ponderações absolutamente pertinentes, ressalvado que a argumentação apresentada pelo Comando da Aeronáutica não é exclusiva do setor sob sua responsabilidade. Aplica-se a todas as modalidades de transporte sujeitas a transportar passageiros gratuitamente sem previsão de compensação das receitas operacionais que a empresa concessionária ou permissionária deixar de arrecadar. O que, na realidade, distingue a modalidade aérea das demais é o fato de que, nesse caso específico, a ausência de um esquema adequado de custeio assume dimensão ainda mais crítica, em função dos valores tarifários substancialmente mais altos que os praticados nas demais modalidades de transporte. Com efeito, possibilitar o uso gratuito de serviço tão seletivo, de custo operacional e tarifa tão elevados, sem a devida cobertura, parece algo inaceitável. Ainda mais sabendo-se que o critério estabelecido pelo projeto para permitir a utilização do transporte aéreo pelo portador do passe livre não oferece o mínimo rigor. Afinal, o fato de o beneficiário comprovar que a viagem está sendo realizada para tratamento de saúde – única exigência prevista – não significa necessariamente que ele não possa realizar o tratamento na própria unidade da federação em que resida, o que o dispensaria de fazer um deslocamento de âmbito interestadual. Tampouco significa que o estado geral do paciente em busca de tratamento especializado não lhe permita deslocar-se em outra modalidade de transporte mais econômica – ônibus, por exemplo. Diante das questões levantadas, não nos parece correto, portanto, que as boas intenções que nortearam a proposição das medidas objeto do PLS nº 66, de 2004, prevaleçam sobre as suas reais condições de aplicabilidade, inobstante as reconhecidas dificuldades suportadas pelas pessoas portadoras de deficiência ou de moléstias consideradas graves ou incapacitantes.

Acrescente-se a isso que a perfeita operacionalização dos benefícios ora propostos dependeria de um amplo e cuidadoso trabalho de regulamentação. Nesse contexto, precisariam ser equacionados aspectos que vão desde a delimitação do universo dos potenciais beneficiários – por meio da conceituação de doença grave e incapacitante, ou da elaboração de uma relação das doenças cujos portadores fariam jus à gratuidade no transporte –, até a indicação do tipo de documento considerado hábil para efeito de comprovação da finalidade da viagem que o beneficiário pretenda realizar em avião. Por fim, vale lembrar que, entre especialistas, predomina o entendimento de que a cobertura total ou parcial do custo do deslocamento de pessoas enfermas para tratamento de saúde em centros adequados é uma questão a ser resolvida no âmbito do setor de saúde. Os órgãos de saúde seriam, assim, competentes para julgar os casos aplicáveis, bem como a necessidade e a oportunidade do deslocamento, os centros de destino mais adequados para cada caso, e até a necessidade de acompanhante. O fornecimento do transporte, então, seria considerado parte integrante do tratamento, a ser custeado pelo sistema público de saúde ou por entidades privadas, no caso daqueles inscritos em sistema de saúde complementar.

III – VOTO

Pelo exposto, votamos pela rejeição do Projeto de Lei do Senado nº 66, de 2004, de autoria do Senador Marcelo Crivella.

Sala da Comissão,

, Presidente

, Relator