O SR. MARCELO CRIVELLA (PL – RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, as minhas primeiras palavras são de agradecimento a V. Exª por ter-se inscrito a meu favor na última sexta-feira.
Eu gostaria de cumprimentar os brasileiros e as brasileiras que nos assistem pela TV Senado.
O Brasil está horrorizado com a tragédia ocorrida ontem, no Rio de Janeiro. Dezenas de corpos sem cabeça, com membros mutilados, muitos deles queimados. Esse era o cenário na Casa de Custódia de Benfica, após 62 horas de rebelião, que terminou às 20 horas de ontem. “Foi o inferno em vida. Consegui contar 28 corpos, mas acho que havia muito mais de 30”, afirmou o Deputado Estadual Geraldo Moreira (PSB), Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Alerj.
Em um dos presídios de segurança máxima de Bangu, espera-se para breve um confronto de proporções ainda maiores, envolvendo cerca de 500 homens do 3º Comando contra outros 500 do Comando Vermelho. Nunca se viu nada igual no Brasil.
Agora mesmo, no instante em que faço este pronunciamento, todos os morros habitados das principais capitais do Brasil estão controlados por facções criminosas, e milhões de brasileiros subjugados, inclusive crianças, às suas regras injustas. Não me refiro apenas à cor da roupa ou à menção de um número. Falo de menores que não podem tomar vacina ou estudar, porque o posto de saúde ou a escola disponível, embora próximos, estão em local dominado por uma facção rival.
Entramos na maior crise social da história republicana, que se arrasta desde os últimos anos da década passada. As taxas de desemprego e subemprego atingiram níveis recordes, e a marginalização social e a criminalidade alcançaram patamares inacreditáveis. A razão de fundo tem sido a política econômica. Ela determina o alto desemprego, e o alto desemprego determina o resto. Todos os sintomas da nossa grave patologia social, inclusive o da insegurança, que afeta todos os segmentos sociais, estão diretamente relacionados com processos econômicos subjacentes, decididos nos gabinetes tecnocráticos de Brasília, na Fazenda e no Banco Central.
Ao lado dos 25 milhões de desempregados e subempregados, outros milhões de brasileiros se entregam a arriscadas estratégias de sobrevivência, algumas na fronteira da marginalidade, outras na marginalidade aberta. Não temos feito, há mais de uma década, os investimentos necessários e proporcionais para absorver mão-de-obra juvenil; aliás, não temos sequer investido para qualificá-la. Assim, temos fragilizado o Brasil, tornando o nosso País refém do império do narcotráfico, que hoje é o empregador dessa mão-de-obra não qualificada, dessas vidas marginais para as quais, no passado, negamos a esperança de um futuro melhor.
Por mais paradoxal que pareça, Sr. Presidente, a crise da segurança conspira a nosso favor, na medida em que se torna um instrumento irresistível de pressão para mover o Governo da inércia provocada pela falta de investimentos públicos, pelo superado conceito do Estado mínimo, pela economia sem demanda, pela política dos juros altos e dos superávits bilionários, impostos pela insensibilidade da comunidade financeira internacional.
Junto com a crise econômica, cresce o tráfico de drogas, que torna a segurança pública uma tarefa quase impossível. O narcotráfico tem princípio, meio e fim. Ele começa no contrabando de drogas e de armas – que atravessam, com certa facilidade, nossas vulneráveis fronteiras, principalmente nos limites com o Peru, a Bolívia e a Colômbia – e depois se dilui em centenas de milhares de sacolés de cocaína, vendidos nas principais cidades por meninos adolescentes, chamados de aviõezinhos ou vaporzinhos, e consumidos até pelas classes altas. Por fim, essa tragédia se conclui com a lavagem do dinheiro arrecadado em esquemas de empresas de fachada, sócios-laranja, compra e venda de dólares ilegais e remessas para o exterior. Estão aí, Sr. Presidente, o princípio, o meio e o fim, bem conhecidos e diariamente repetidos.
Há muito se discute o emprego das Forças Armadas no combate à violência nos centros urbanos. Não nos parece a melhor opção que soldados, com treinamento para operações regulares que utilizam armamento pesado, subam ou cerquem morros e, com soldo inferior ao salário mínimo, sejam expostos à corrupção do sistema. Além disso, parece-nos temerário expor a tiroteios de fuzis e metralhadoras civis inocentes que inevitavelmente estarão na linha de fogo das balas perdidas, simplesmente pelo fato de morarem ali.
É lá nas fronteiras que as Forças Armadas têm muito a contribuir. O emprego do Exército na parte terrestre, da Aeronáutica no espaço aéreo e aeroportos e da Marinha no litoral e portos atingirá no fígado as cadeias de suprimento do crime organizado, permitindo ainda que a Polícia Federal se dedique ainda mais à investigação da outra ponta do delito, que é a lavagem do dinheiro.
Entretanto, Sr. Presidente, neste trágico momento da vida nacional, em que não há segurança garantida para a vida de milhões de brasileiros e corpos jazem decepados e queimados em locais onde o Poder Público mantém guarda de 24 horas; neste momento em que nossas fronteiras continuam a ser invadidas por quadrilhas internacionais, que trazem as armas que matarão amanhã nossos filhos a caminho da escola e toneladas de cocaína que os farão dependentes e seres humanos de terceira categoria; neste momento, Sr. Presidente, em que precisamos tanto de segurança, mais da metade dos aviões da Força Aérea não voam, mais da metade dos navios da Marinha não navegam, e mais da metade das viaturas do Exército não trafegam por falta de recursos.
É patente que as Forças Armadas tem passado, nos últimos anos, por uma crise orçamentária vergonhosa, que compromete o exercício de suas funções constitucionais. É possível que, anterior a isso, estejamos diante de uma crise de identidade do próprio setor da Defesa Nacional, em face das grandes transformações internas e internacionais que fizeram superada a estratégia anterior.
Precisamos construir uma solução global. Assim, discutir a crise na segurança pública é discutir a crise nas Forças Armadas; é discutir a crise no desenvolvimento brasileiro e também, Sr. Presidente Paulo Paim, o valor do salário mínimo. Não pode ser de outra forma: não pode haver defesa forte em um país economicamente fraco.
Por isso venho a esta tribuna defender a retomada dos investimentos públicos financiados pelo superávit primário, a começar pela garantia de um orçamento digno, anual e estável de, no mínimo, 2,1% do PIB para investimento e custeio das Forças Armadas.
É uma visão distorcida considerar que as Forças Armadas brasileiras são apenas unidades de despesa. O consumo das Forças Armadas gera investimentos e empregos no setor privado e no setor de ciência e tecnologia – de alto valor agregado para a indústria. Além disso elas promovem um sentimento de unidade nacional, pois prestam serviço nas áreas mais remotas do País.
Elas são também a porta de entrada de centenas de milhares de jovens no mercado de trabalho, sobretudo os mais pobres, uma oportunidade de ascensão social. Eu mesmo só pude concluir meus estudos universitários graças ao soldo recebido nos oito anos em que servi, com muita honra, ao Exército Brasileiro. Na situação de alto desemprego combinado com índices alarmantes de criminalidade organizada, as Forças Armadas precisam ser estimuladas – para isso devidamente providas – a incorporar o máximo possível de recrutas e a dar a eles formação profissional e moral, disciplina e amor à Pátria.
Isso requer recursos. E não são recursos perdidos, pois entram na seiva que alimenta a produção de renda e riqueza. Alguém poderia fazer objeção argumentando que outros órgãos do Estado mereceriam também aumento de orçamento. Nenhum, porém, Sr. Presidente, tem as características das Forças Armadas, cujos integrantes não são sindicalizados ou politizados, situação em que a interferência política pode resultar em manipulação orçamentária.
Assim, retomaríamos uma política progressista, à altura dos nossos potenciais, com investimentos que, além de gerar a demanda de que necessitamos para reaquecer a economia, serviriam para combater o crime e o desemprego, irmãos de sangue que ameaçam nossa paz e soberania.
Estamos em um momento crucial da vida econômica, social e política brasileira. Pela primeira vez em nossa história, uma crise social de proporções gigantescas coincide com uma situação política de democracia com cidadania ampliada, reconhecida pela Constituição-cidadã de 1988. O que significa que cidadãos que estão sofrendo as conseqüências diretas da política econômica recessiva gozam de prerrogativas amplas de manifestar sua opinião, seja diretamente pelo voto, nas eleições, seja em manifestações públicas livres, durante os intervalos eleitorais. Eventualmente, isso nos dá a impressão de uma crise política iminente, na medida em que explodem manifestações de inconformismo em todos os níveis – dos movimentos dos sem-terra e dos sem-teto às greves de funcionários públicos, passando por saques de supermercados no sertão, paralisação nas universidades públicas e clamor da população por assistência social e segurança –, mantendo a sociedade em estado de mobilização e ebulição constante.
Não temo as formas pacíficas de expressão da democracia, mas não podemos fechar os olhos para os sinais que elas emitem. Elas nos alertam a pensar que não é preciso apenas mudar, mas mudar na direção certa, de forma a conciliar a democracia com os interesses objetivos das massas. Para mudar, é preciso conhecer a situação a ser mudada. É preciso, sobretudo, destruir os fetiches usados como recursos ideológicos para manter o status quo. Não é preciso ser economista para entender a verdadeira natureza dos processos econômicos a que estamos submetidos – eu não sou, como também o Presidente Lula não é, nem o próprio Ministro Palocci –, mas é preciso refletir sobre eles.
O maior fetiche da ideologia econômica dominante no Brasil e, talvez, no mundo contemporâneo, está relacionado com o papel do Estado na economia. Difundiu-se não só sob a forma sintética de “Estado Mínimo”, isto é, um Estado que deixa as funções básicas da sociedade e da economia para a esfera privada, como sob o enunciado de que o Estado, “como uma dona de casa prudente”, não deve gastar mais do que arrecada. O fetiche do “Estado Mínimo” surgiu no contexto europeu num momento de máximo desenvolvimento do Estado do bem-estar social. Para os neoliberais, o Estado tinha que ser reduzido, porque atingira um grau de desenvolvimento máximo Qualquer que seja a verdade disso para a Europa industrializada, ela não vale para o Brasil. O Estado brasileiro ainda tem um papel insubstituível tanto como motor do desenvolvimento econômico quanto como continuador de um ainda inacabado Estado do bem-estar social e principalmente como gerador de demanda em momentos de recessão da economia. Além de tudo, o Estado brasileiro tem o dever de prover segurança ao seu povo.
Fico imaginando que a mãe de um desses presos decapitados e queimados jamais perdoará as autoridades deste País, que tinham o dever de zelar pela segurança do seu filho.
A questão do dispêndio público é outra história. A analogia com a dona de casa austera é falsa sob dois aspectos. Primeiro, muita dona de casa austera recorre ao crédito. Não se pode esquecer que o crédito é instrumento fundamental do capitalismo. Qual é a família brasileira que nunca comprou a crédito, que nunca gastou mais do que a receita corrente (a despeito das taxas de juros escorchantes que existem neste País)? Da mesma forma, qual é o Estado que nunca recorreu à dívida pública para cobrir despesas necessárias e inadiáveis? Isso, porém, não é tudo. O Estado não se confunde com uma casa. O Estado emite moeda, e a emissão monetária é fundamental para a circulação da riqueza na economia. Em certas circunstâncias, não só é legítimo como incontornavelmente necessário que o Estado gaste mais do que arrecada, uma vez que o dispêndio público, mesmo deficitário, é a única forma, nas recessões profundas, de fazer retomar a demanda agregada e o investimento privado.
Não consigo entender, Sr. Presidente, que, no momento em que vemos em risco a segurança do povo e a defesa nacional, com a invasão de armas e drogas por nossas fronteiras, continuemos a manter bilhões esterelizados nos cofres do Banco Central, a título de superávit primário, em obediência a critérios ditados pela comunidade financeira internacional.
Será que é mais importante atender o interesse financeiro do capital especulativo do que manter a soberania nacional?
Estamos vivendo um desses momentos em que é preciso uma decisão política de priorizar o superávit social em relação ao fiscal, e essa proposta está centrada no aumento do dispêndio público e em taxas de juros nominais em níveis internacionais, pelo menos enquanto durar a situação de alto desemprego e marginalidade.
O Banco Central só tem um instrumento para controlar a inflação: aumentar ou manter em patamares elevados a taxa de juros e apertar o crédito. Assim, para todo tipo de inflação que existe, só há uma receita: aumentar os juros e derrubar a demanda. Nessa marcha de insensatez, acabaremos todos, empresas e empregos, virtualmente liquidados, porque está provado que mesmo com inflação baixa só o medo de que ela volte mantém a política recessiva do Governo.
A economia é uma via de mão dupla, que tanto pode nos levar ao desastre, na via do “Estado Mínimo”, como pode nos conduzir à regeneração e à prosperidade, na via do Estado regulado. Temos de fazer uma opção de destino.
Neste pronunciamento venho fundamentar conceitualmente a proposta de se assegurar para as Forças Armadas brasileiras um orçamento anual estável, equivalente a, no mínimo, 2,1% do PIB, tendo em vista as necessidades da defesa e os efeitos multiplicadores de emprego e de renda do investimento militar, assim como seus efeitos na promoção social, no desenvolvimento científico e tecnológico do País e na promoção de uma política salarial para as Forças Armadas que promova vocações, inclusive nas camadas mais elevadas do extrato social.
Precisamos dotar nossas Forças Armadas de recursos suficientes para que cumpram sua função precípua de defesa nacional no contexto internacional contemporâneo, onde é preciso a vigilância de fronteiras não contra as forças regulares de um país expansionista em uma guerra de conquista, mas contra o crime organizado, operado por traficantes guerrilheiros. A tradição pacífica da relação brasileira com os vizinhos não dispensa o compromisso com a defesa, uma vez que a distensão ideológica não eliminou as possibilidades de conflitos de interesse entre Estados. É preciso, neste momento em que países se unem em blocos, a preparação de uma capacidade militar dissuasória de agressões externas.
Na função econômica precisamos ver o investimento militar sob a ótica do investimento e da criação de demanda efetiva de bens e serviços tipicamente militares e o que isso produz na indústria civil de alimentos, de vestuário, de calçados, de equipamentos e de transporte; do efeito multiplicador de renda; do desenvolvimento da capacidade produtiva própria de equipamento militar com substituição de importações e potencial de exportações.
Na função tecnológica, precisamos ver o investimento militar como indutor do desenvolvimento científico e tecnológico, porque até as importações militares permitem o acesso a novas tecnologias, por acordos de transferência.
Mas, sobretudo, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é na função social que vejo ser imbatível o argumento para o aumento do dispêndio com as Forças Armadas, porque ele trará instantaneamente uma relevante contribuição para a redução das altas taxas de desemprego prevalecentes no Brasil contemporâneo, abrindo caminho de ascensão social para centenas de milhares de jovens das classes menos favorecidas que se encontram hoje em situação de alto risco diante do narcotráfico. Educação, disciplina, treinamento profissional, assistência social às áreas remotas, assistência a populações atingidas por calamidades públicas ou parceria com a iniciativa privada e demais poderes do Estado para serviços de infra-estrutura são outras missões suplementares para as Forças Armadas.
O preconceito atualmente existente, inclusive em áreas de Governo, atribui ao orçamento militar um sentido supérfluo. Ignora-se não só a função precípua de Defesa – o que denota uma atitude ingênua frente à realidade do mundo contemporâneo e emergente –, como desconhece-se a importância vital das funções correlatas acima indicadas.
O orçamento militar deve ser conceituado como investimento fiscal necessário para a segurança da atual e das próximas gerações e não simplesmente como gasto sem retorno. Sr. Presidente, em minha opinião, trata-se de um crime de lesa-pátria aceitar que acordos internacionais restrinjam nosso investimento militar por conta de metas de superávit primário. É uma restrição à soberania a depauperização das Forças Armadas via controle externo da política fiscal-monetária. Os acordos com o FMI e as políticas restritivas internas ajustadas a esses acordos, com ou sem formalização, não podem impedir a recuperação da autonomia de gastos em Defesa como passo imprescindível para o resgate da soberania nacional, inclusive em matéria monetária e fiscal.
Para concluir, Sr. Presidente, repito que este discurso propõe uma solução global de retomada de crescimento com geração de emprego e renda que passa não só pelo reaparelhamento das Forças Armadas como também pelo aumento do investimento público principalmente na área social. É por isso que conclamo meus companheiros não só a essa proposta de melhorar o orçamento das Forças Armadas como também à de proporcionar um salário mínimo mais justo, matéria que ora tramita nesta Casa, o Congresso Nacional.
O salário mínimo afeta diretamente quatro categorias de trabalhadores: os milhões de pensionistas e aposentados, sobretudo da área rural, os empregados domésticos, os funcionários públicos dos Estados e Municípios mais pobres e os jovens em começo de carreira no serviço, na indústria e no comércio. Temos sido tão pródigos com o capital e tão severos com a mão-de-obra!
Por essa razão, Sr. Presidente, termino lembrando as palavras do Apóstolo Tiago, que bem retratam a situação brasileira, em que a prosperidade de poucos a cada dia se afasta mais da necessidade de milhões de irmãos, causa maior da violência e da crise de segurança pública, por esquecer que só existirá paz quando houver justiça.
Dizia o Apóstolo em sua Carta: “Atendei agora, poderosos, chorai lamentando por causa das desventuras que vos sobrevirão, a violência que bate a vossas portas. As vossas riquezas estão corruptas e vossas roupagens comidas de traças”. E aqui parece que o Apóstolo profeticamente se refere ao superávit primário brasileiro esterilizado no Banco Central, quando diz: “Vosso ouro e vossa prata estão gastos de ferrugem, e essa ferrugem há de ser testemunho contra vós mesmos e há de devorar como fogo. Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando. E o clamor dos ceifeiros chegou aos ouvidos de Deus”.
Esperamos sinceramente, Sr. Presidente, que esse clamor dos ceifeiros chegue também aos ouvidos do Ministro Palocci.
Muito obrigado, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, e todos os brasileiros que assistem a esta sessão pela TV Senado.