“Volto a fazer a pergunta que já fiz uma centena de vezes, a mim e aos outros: qual foi o pior dia para os judeus nos 12 anos de inferno nazista? Todos damos a mesma resposta: 19 de setembro de 1941. Nesse dia tornou-se obrigatório o uso da estrela de Davi, de seis pontas, aquele trapo amarelo com a inscrição em letras maiúsculas: JUDEU. […] Cada judeu passou a carregar consigo o próprio gueto, como o caracol carrega a casinha.”

Assim, o filólogo Viktor Klemperer inicia o capítulo 25 de “A Linguagem do Terceiro Reich”, fortíssimo testemunho sobre a vida dos judeus durante o nazismo. Sujeitos à identificação compulsória, a partir dessa data eles perderam definitivamente o direito de viver em paz.

Klemperer, portador da estrela, nos conta o que ocorria quando caminhava na rua: “‘Olhe bem para ele, Horst, é o culpado de tudo’, diz um avô ao netinho em uma calçada em Berlim. ‘Ainda vives, porco desgraçado? Eu deveria passar com o carro por cima da tua barriga!’, grita um motorista desconhecido”.

Foi o ápice do antissemitismo, que tem longa história, sob diferentes roupagens, e que culminou no assassinato premeditado de 6 milhões de inocentes.

Houve ali um paradoxo: essa comunidade acusada de ser um corpo estranho na nação alemã vivia o vértice da sua integração. Desde o final do século 18, era um dos principais polos de disseminação dos ideais iluministas: universalismo, direitos humanos, razão, aperfeiçoamento de si mesmo.

Cansados de séculos de exclusão, perseguição e exílio, os mais importantes intelectuais judeus alemães –desde Heinrich Heine (1797-1856) até Walter Benjamin (1892-1940)– anunciaram e saudaram a época em que os homens seriam avaliados pelo que eram, e não por suas origens étnicas e religiosas.

Essa comunidade que, majoritariamente, queria viver o sonho de uma civilização europeia cosmopolita foi atropelada pela ascensão fulminante de uma ideologia baseada em “blut und boden” (do alemão sangue e terra), em que a razão, conceito inclusivo, deu lugar à raça, conceito excludente.

A tolerância desapareceu. Identificados com o iluminismo, os judeus tornaram-se traidores de uma construção nacional patológica. A terra do escritor Goethe tornou-se a terra de Hitler. Volto a Klemperer: o pior dia foi aquele em que cada judeu foi forçado, pelo poder, a se identificar como tal e a se expor.

Felizmente, estamos muito longe de algo parecido no Brasil. Justo por isso, é incompreensível que a pró-reitoria da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, tenha solicitado aos seus departamentos, por ofício, a identificação de eventuais cidadãos israelenses que estejam estudando ou trabalhando em seus campi.

Se estão lá, é porque foram convidados ou se habilitaram conforme as regras da universidade. Que sejam deixados em paz. Que sua privacidade não seja violada. Que seus direitos sejam respeitados. Que a direção da universidade volte atrás e peça desculpas.

É o mínimo que todos esperamos, pelo bem do Brasil. A história mostra que o passado costuma voltar quando nos falta vigilância.

MARCELO CRIVELLA, 57, é senador pelo PRB-RJ

Folha de São Paulo