Num artigo recente na “Carta Capital” o deputado Delfim Netto exalta a grande revolução no processo produtivo mundial provocada por “400 milhões de chineses educados, ganhando 100 dólares por mês, diligentes e poupadores (porque o Estado não cuida de seu futuro)”. Implicitamente, este seria, segundo o ex-ministro, também o ideal da ordem social brasileira e de toda a civilização mundial. São elementos essenciais de uma nova utopia no fantástico mundo globalizado, desprovido de direitos sociais.

Tenho para mim que ideólogos neoliberais, como Delfim, perderam o sentido da história e correm de volta ao barbarismo. A Idade Moderna caracterizou-se pela idéia da possibilidade do progresso contínuo do homem, em todas as suas dimensões, de forma a alcançar crescentes estágios de segurança individual e coletiva, assim como de bem estar. Sonhou-se com formas solidárias de produção, com o princípio da cooperação impondo-se à competição radicalizada, com o próprio fim das guerras. A social democracia européia quase realizou esse sonho.

O que mais impressiona no texto de Delfim é a valorização sutil dos chineses “poupadores” pela razão prosaica de que “o Estado não cuida de seu futuro”. Eis aí, em todas as letras, o que seria o motor de arranque do sistema capitalista chinês que devemos copiar.

A antropologia nos aconselha a tomar cuidado com a extrapolação de realidades e atitudes sociais, econômicas e políticas. A China é um grande mistério, às vezes para os próprios chineses. O sistema ditatorial chinês perdura há milênios, transitando do império para a república sem tocar (e às vezes reforçando, como na Revolução Cultural) as bases autoritárias. A transformação da China numa fábrica de bens de consumo para o mundo, e principalmente para os Estados Unidos, é um fenômeno único de capitalismo de Estado que recorre a um controle social quase absoluto.

Apontar a China, mesmo que de forma sub-reptícia, como exemplo a ser seguido é ignorar as especificidades chinesas. Os baixos salários que viabilizam custos competitivos são a contraface dos gigantescos superávits comerciais que implicam imensas transferências de recursos reais para o exterior, em detrimento do consumo interno. Seria este tipo de mercantilismo melhor do que o mercantilismo anterior ao avanço capitalista na Europa, que financiou guerras e fez a fortuna de bancos, mas empobreceu os povos?

Por outro lado, o controle absoluto da economia e da sociedade permite ao governo chinês, pelo menos até o momento, conciliar as demandas sociais com as respostas econômicas.

Nesse ponto, e apenas nesse ponto, a economia chinesa parece um pouco com a economia norte-americana, e difere fundamentalmente da brasileira: são economias que não fazem concessão ao neoliberalismo em matéria de política de pleno emprego. Os gigantescos déficits públicos norte-americanos não permitem que o desemprego fique fora do controle. A lição dos anos 30, com a Grande Depressão, nunca foi esquecida nos Estados Unidos, a despeito do neoliberalismo vendido para fora. Já os dirigentes chineses não seriam loucos em tolerar alto desemprego urbano apenas para agradar investidores estrangeiros. O Estado na China não cuida do futuro das pessoas, como diz Delfim. Cuida do presente, e bem melhor do que o nosso Estado.

Publicado na Folha Universal, Edição 734 de 2006