Caiu sobre a cidade do Rio um dilúvio de prepotência, força e violência, no melancólico episódio do movimento dos bombeiros. Não entenderam os militares que, induzidos na sua boa-fé, perderiam a legitimidade da defesa de suas justas aspirações naquele protesto insensato e, sobretudo, lesivo aos seus direitos, do qual havemos de tirar algumas lições.
A primeira, e para a qual chamo a atenção do Congresso Nacional, é que devemos urgentemente fixar um piso nacional para as forças auxiliares, contribuindo para que a ordem militar possa manter rigorosa sintonia com a ordem judicial e com o estágio econômico do nosso desenvolvimento.
Se a paz é fruto da justiça, vimos nossos heróis serem martirizados, no paroxismo da injustiça, que é o fato, vexatório e inexplicável, de que o segundo Estado mais rico da Federação paga o pior salário ao seu Corpo de Bombeiros militares.
Desse deplorável acontecimento, outra lição devemos tirar. É preciso considerar o clima de fermentação emocional do Rio. De um lado, pequena parte da elite abastada, com acesso a toda a infraestrutura urbana, à cultura, ao lazer e que, por vezes, se mostra tão conspícua em suas festas suntuosas, mostradas nas colunas sociais, em mansões cercadas de segurança privada, verdadeiras ilhas de luxúria num oceano de barbárie.
Na outra margem desse oceano, uma imensa parcela da nossa população sobrevive em péssimas condições de moradia, de saúde, de trabalho e de educação, num cotidiano de sofrimentos e privações, numa subvida de um submundo de misérias e agonias.
Em momentos como este é que precisamos de um autêntico líder político, democrático, para em nenhum momento expressar ressentimento ou vingança, que nada constroem, mas que compreenda os anseios, as inquietações e as angústias do seu povo para, por um lado, com exemplar correção cívica e com palavras serenas e positivas, garantir o funcionamento das instituições e que a lei seja observada em seus limites e, por outro, agir com maturidade e lucidez, restabelecendo o equilíbrio natural da justiça.
Como fez Cristo, que não aplicou a impiedosa letra da lei, que impunha apedrejar a prostituta, para inaugurar uma nova dimensão, mais idônea e eficaz, quando cunhou a legenda, bela e estupenda: “Aquele que não tiver pecado, atire a primeira pedra”. Que faríamos se obrigados a sobreviver com R$ 950 por mês, sem vale-transporte?
Os fatos são eles mesmos e suas circunstâncias. São responsáveis diante do tribunal da história os que praticam os fatos, mas também os que ajuntam nos horizontes as nuvens negras da injustiça, que formam as circunstâncias propícias às trovoadas, às sublevações da insânia de alguns, provocando a insolência ou a inconsciência de muitos, trazendo a inquietação e a intranquilidade a todos.
Defendo, portanto, a anistia não como um tratado entre o poder e a revolta, como dizia Rui, mas, sim, como intervenção da equidade pública varrendo os danos de uma repressão que se desnorteou e que não se sustenta.
Fonte: Folha de São Paulo, 18 de junho de 2011