A marcha da legalidade
NINGUÉM PÕE em dúvida o valor da imprensa livre e atuante. Todos nós conhecemos a “marcha da insanidade”: primeiro fecham-se os Parlamentos, depois caem as instituições e, finalmente, amordaça-se a imprensa -e é assim que os povos mergulham, desarvorados, no cataclismo de seus conflitos ideológicos. O que se espera, entretanto, é que o direito à liberdade de imprensa se harmonize com outro, que lhe antecede e a ele se sobrepõe, que é o direito à dignidade humana.
A imensa multidão que marchou para Jesus na última segunda-feira tem plena consciência de que todos os princípios que se propõe a preservar, propagar, defender e amar para sempre não são nem sequer um milímetro inferiores ou incompatíveis com os princípios constitucionais de legalidade e justiça em que se fundamentam a sociedade e o Estado.
É que, para sermos justos, precisamos observar todas as circunstâncias que emolduram os fatos, já que até mesmo os apóstolos foram julgados, sentenciados e morreram, uns crucificados, outros esfolados, tudo dentro de uma legalidade, mas sem que se fizesse justiça.
O que ocorreu com o casal Hernandes, que ingressou nos Estados Unidos da América sem declarar o valor em espécie que levava, é que foi punido com o máximo rigor por conta da atmosfera de espetáculo, digna do coliseu romano, constituída de denúncias, insinuações e suspeições que, embora não provadas, emularam circunstâncias, as quais, estas sim, preponderaram no julgamento do fato em si, porque foram maciçamente divulgadas pela imprensa.
Após décadas de trabalho árduo, cujas monumentais realizações são a maior prova da sua honestidade de propósitos, Estevam e Sônia Hernandes foram sumariamente condenados por supostamente se “evadirem” do Brasil e adentrar nos EUA com a extraordinária e mirabolante quantia de menos de R$ 50 mil cada um.
Eis aí o “grande assalto do século”.
Cumpriram a pena. Sofreram todos os vexames impostos por uma sentença farisaica que, de alguma forma, lembra a que condenou os discípulos por comerem sem lavar as mãos.
Pagaram um preço pesado. Mas o mais cruel de tudo é que, todas as vezes em que a imprensa a eles se refere, aviltando normas internacionais de direitos humanos e movida pelo mais odioso preconceito, o faz com a remissão àqueles fatos, já superados, para, mais uma vez, condená-los.
Veja que o artigo recém-publicado nesta Folha sob o título “A Marcha de Jesus e o Diabo” (Opinião, 3/11, pág. A2) reincide no mesmo pecado.
Eu sei bem o que é isso. Por causa de uma denúncia apócrifa, publicada de maneira precipitada por esta Folha, respondi durante anos por crimes que nunca cometi, até que o Supremo Tribunal Federal, após ouvir o procurador-geral da República, constatou a minha inocência.
Mandei o acórdão para todos os jornais que me acusaram. Nenhum deles publicou sequer uma linha.
Trata-se do mesmo processo que, agora requentado, há pouco ocupou, espalhafatosamente, as primeiras páginas de quase todos os jornais brasileiros. Só que, dessa vez, não me incluíram entre os acusados. Se o fizessem, o processo iria para o STF, em virtude da garantia constitucional de foro privilegiado consagrada aos membros do Parlamento, onde morreria no nascedouro, já que aquela egrégia corte o conhece minuciosamente e sobre ele já decidiu.
Mas não creio, honestamente, que a pretensão seja a de obter a condenação. Ao que parece, o maior interesse é o de expor pessoas públicas ao constrangimento de longos depoimentos -antes e depois dos quais se promove o oprobrioso espetáculo midiático.
Há na Bíblia uma passagem que diz: “Ferirei o pastor e se dispersará o rebanho”. Os milhões de evangélicos que marcharam para Jesus ao lado de seus líderes, reafirmo, foi o ato mais solene e majestoso de revogação popular de todas as injúrias e calúnias que, ao longo dos últimos anos, nos irrogaram os ódios e as paixões.
Marcelo Crivella
Publicado no jornal Folha de São Paulo, no dia 5 de Novembro de 2009