Quando a produção de cachaça na sesmaria de Gonçalo Coelho, hoje município de São Gonçalo, começou a crescer, nos idos do século XVII, fazendo com que os compradores internos gostassem tanto que a venda do vinho do porto caísse consideravelmente, desestabilizando o mercado português, a Coroa Portuguesa relembrou do Pacto Colonial e colocou sobre a venda da aguardente um imposto tão alto que tornou impossível vender a produção. Os escravos se revoltaram e foram à capital (Rio de Janeiro) e distribuíram de graça “cachaça” à população. Houve confronto e vários escravos foram mortos. São Gonçalo chorou.

Ontem à noite, 300 anos depois daqueles fatos, recebi a ligação da preocupada vovó Aurora, que também reside em Alcântara, município de São Gonçalo:

– Senador – perguntou -, e essa briga da Petrobras na Bolívia? Atrapalha a gente?

– É capaz, – respondi. — Nesse mundo globalizado, uma borboleta bate asas no Japão e causa aqui um furacão. Eu sabia que ela estava preocupada com a refinaria que a Petrobras irá construir, nos próximos anos, nos municípios de Itaboraí e São Gonçalo, com investimentos de mais de 5 bilhões de reais e, para isso, contando com parte do lucro obtido na comercialização de gás que explora na Bolívia.

Criada no final de 1995, a Petrobras Bolívia iniciou suas operações efetivamente em meados de 1996 e, em menos de dez anos, tornou-se a maior empresa do país, onde já investiu mais de 3 bilhões de reais nos últimos dez anos. O problema é que o novo presidente da Bolívia, Evo Morales, elegeu-se prometendo nacionalizar reservas de gás e petróleo e agora quer cumprir a promessa. O presidente boliviano diz que “precisamos” (eles precisam) “de sócios e não de patrões”.

Entre 1997 e 2000, a Petrobras construiu o gasoduto Bolívia-Brasil, que tem 3.150 km mil quilômetros, que começa em Santa Cruz da La Sierra e termina em Porto Alegre, transportando por dia 30 milhões de metros cúbicos de gás. O presidente da Bolívia não aceita mais a hipótese negociada no governo anterior, que conferia à Petrobras o direito de explorar diretamente a jazida, pagando royalties e impostos. Eles querem fazer isso, ou seja, negociar o gás e pagar à Petrobras apenas pelos serviços de exploração, processamento e transporte, o que atinge diretamente os interesses da companhia brasileira e, possivelmente, seus investimentos em São Gonçalo e Itaboraí. Em última análise, atinge a vovó Aurora.

Se o assunto não se resolver, vai parar na Organização Mundial do Comércio, que julgará a quebra de contrato. A visão dos analistas é a de que a Bolívia pode ser muito prejudicada, porque isso acarreta sanções internacionais, embargos, desconfiança nos investidores e possivelmente fecha a porta do Brasil para produtos bolivianos. Além disso, parando a Petrobras de operar suas refinarias (ela tem duas na Bolívia), faltará gás lá e aqui, gerando um “quid pro quo”, como se dizia em Latim, ou qüiproquó, como dizemos nós, de proporções estrondosas.

Nós, brasileiros, conhecemos bem essa história de candidato que faz bravata nos palanques e depois que assume o governo cai na real. Sinceramente espero que o governo da Bolívia compreenda a importância de cumprir contratos e lute pelo seu povo sem desrespeitar o nosso. Principalmente nossa querida vovó Aurora, que há muito tempo espera ver dias melhores para sua querida São Gonçalo. Nos tempo dos escravos, São Gonçalo chorou. Hoje, vai à luta.

Publicado na Folha Universal, edição 732, de 2006